02 fevereiro 2011

Pensamentos de escritor


O escritor é o mais vulnerável apaixonado pela sua obra e o seu mais feroz crítico e detractor. Ambas as coisas faz em silêncio e em privado, na angústia de saber que não avalia a obra, mas que se avalia a si.

“O Quinto da Discórdia”, de Robertson Davies, editado pela Ahab,

Ser canadiano não é o mesmo que ser estado-unidense. E os europeus, exceptuando os franceses, têm a tendência de olhar para a imensidão canadiana como um prolongamento territorial, político e cultural dos Estados-Unidos.
No entanto, as diferenças existem e Robertson Davies, escritor, 1913-1995, para além do seu cunho pessoal de escrita, no seu romance “O Quinto da Discórdia”, primeiro romance da Trilogia de Deptford, publicado em 1970, mostra a separação cultural entre os dois países por contraponto à literatura de referência dos Estados-Unidos de autores seus contemporâneos - Roth, MacCarthy, Updike, Irving entre outros - para os quais a realidade se descreve tão "real" quanto ela é, sem metáforas, de modo duro e pragmático, destapando de modo rude a vida, as vida. Robertson Davies neste romance traça o percurso de vários personagens ao longo de uma vida inteira, dando-lhe um toque de imaginação, montando acasos e coincidências que "só" podem acontecer nas histórias (em romances), aproximando-se do estilo daquele romance europeu realista, mas ao mesmo tempo dado a estados d'alma e a sensibilidades menos agrestes e corrosivas. De referir que ao estilo de escrita do autor não será alheio o facto de Robertson Davies ter estudado Literatura em Oxford e actor no Old Vic, em Londres.
Ramsey, o protagonista do "Quinto da Discórdia", de educação protestante, mutilado de guerra, da 1ª, sujeitado a várias vicissitudes, não nos aparece como um personagem encarcerado na sua formação e nas suas desgraças. É antes quase um diletante consciente das suas contradições, com uma vida balizada pela investigação/escrita da imagética dos santos(de índole católica, portanto), pela convivência com seu amigo Boy Staunton e pelos cuidados com Sra Dempster, que ele "queria transformar" em santa, "A minha relação coma Sra Dempster, que duraria toda vida, começou exactamente às 05h 58 da tarde de 27 de Dezembro de 1908, momento esse em que eu contava dez anos e sete meses de idade."
Robertson Davies tem o saber literário de fazer conviver no espírito de Ramsey (e no nosso) o interesse pela vida dos santos e a pela magia (ilusionismo, que tem nesta história um papel central), ao fim ao cabo a simultaneidade de duas espécies de experiências que devem a sua existência ao deslumbramento humano pelo inexplicável.
As reflexões e pensamentos de Davies, sobre as mais diversas e díspares matérias são introduzidas e elaboradas ao longo da novela num encadeamento quase perfeito dando a sensação que tudo tem a ver com tudo. Em alguns casos atinge o brilhantismo, pela simplicidade e profundidade - cena com Liesl, "empresária" de ilusionista quando esta visita Ramsey no quarto e, outra, quando Ramsey visita o padre Blazon acamado.
É ainda interessante seguir a ascensão e queda (neste caso, morte) de uma das personagens com as características que estão na ordem do dia: oportunista, bajulador, sem sentimentos, sem escrúpulos.

01 fevereiro 2011

Pensamentos de escritor

A quem pertence a obra literária - romance, novela, poema - depois de lida? Ao autor, ou ao leitor?
Terá o escritor atingido os seus objectivos quando o leitor "vê" aquilo que o autor quis exprimir, ou quando o leitor se deleita a interpretá-la a seu modo?
E deve o autor sentir-se satisfeito com a primeira ou com a segunda hipótese?

Estes pensamentos acompanham o escritor enquanto escreve. Depois...assim que a obra é lida, é esquecer, o autor perdeu o controlo sobre ela.

31 janeiro 2011

"Os assassinatos da Rua Morgue", Edgar A. Poe e a crise


"I will, therefore, take occasion to assert that the higher powers of thereflective intellect are more decidedly and more usefully tasked by the unostentatious game of draughts than by a the elaborate frivolity of chess."

A frase/pensamento supra é de Edgar Allan Poe extraída do conto "Os assassinatos da Rua Morgue". O conto por si só e a colectânea, "Histórias Extraordinárias", em que está inserido, são de uma descritiva e de uma narrativa exemplares, no que à técnica literária do conto diz respeito, obrigando o leitor a um esforço reflexivo suplementar se quiser fruir dos jogos mentais que as histórias encerram.



Na colectânea que li (não sei se são todas iguais) o conto da Rua Morgue é o primeiro, o que é bom porque na introdução deste conto, 4 parágrafos, Poe discorre sobre a inteligência analítica e a inteligência de síntese, (pre)dispondo o leitor a utilizar qualquer delas na leitura dos vários contos de mistério e do macabro, advertindo-o para as características do uso de cada um dos tipos de reflexão em que o uso da intelecto de síntese é muito mais necessário num banal jogo de damas do que num elaborado jogo de xadrez.

Na crise que atravessamos(que não é meramente económico/financeira)somos bombardeados com sucessivas análises, com analistas dos mais diversos quadrantes, qual deles mais analiticamente detentor da verdade do que o outro; nós elaboramos as nossas próprias análises juntando e interligando um número infindável de variáveis fazendo o resultado final jogar a nosso favor.
Portugal necessita de um esforço integrador de soluções dispersas e não de mais análises e de soluções avulsas.

Edgar Allan Poe deu a receita e explicou-a (recorrendo também ao whist, jogo pouco familiar aos portugueses) em quatro parágrafos: joguemos mais às damas e menos ao xadrez.

"O DESERTO DOS TÁRTAROS" e a Revolta de 31 de Janeiro de 1891


Passam hoje 120 anos sobre a data da primeira tentativa armada (espero que Vasco Pulido Valente esteja atento a este blogue para o zurzir caso a afirmação seja menos precisa)de implantação da República em Portugal. Também conhecido pela Revolta dos Sargentos, o acto revolucionário, que teve lugar no Porto, falhou, rezam as crónicas, devido à falta de preparação, fruto da impaciência dos adeptos da acção imediata (que os há em todo lado).

Sobre este facto histórico muitos apontamentos, sem dúvida, aparecerão hoje na net. O que 31 de Janeiro de 1891 me faz lembrar, por oposição, é o romance de Dino Buzzati, "O DESERTO DOS TÁRTAROS". Aí é contada a história do oficial Giovanni Drogo que é destacado para um posto avançado na fronteira do deserto, outrora reino dos Tártaros. O recém-oficial passa uma vida solidão com o resto da guarnição, repetindo todos os dias os mesmos passos, com o objectivo último de serem os primeiros a fazer frente a uma eventual invasão inimiga.
O oficial todos os dias vigia o deserto e vigia a sua vida à espera que aconteça o único facto que lhe dá sentido: combater o inimigo e cobrir-se de glória.
Passam-se longos anos sem que ocorra um acontecimento de relevo, a não ser uma nuvem de poeira, muito ao longe, que poderá indiciar movimentações de tropas inimigas.
Dino Buzzati tem a mestria de transmitir a paciência imensa, que chega a ser exasperante para o leitor, dos homens que esperam que o destino que procuram venha ter com eles, que levados pelo seu carácter, pela formação (neste caso militar), pelo contágio de outros homens que pensam e sentem de modo igual, ponderam as decisões em demasia.
A vida, que não é boa de se assoar, acaba por trair o oficial Giovanni Drogo, não recompensando a sua paciência.
Daí, esta minha convergência entre o romance, onde a decisão falha devido à opção pela espera, e a Revolta do 31 de Janeiro, em que a decisão apressada leva à derrota.
Quando, como, sabe um homem o que decidir?
A única certeza que tenho é que, qualquer que seja a decisão, por quantos seja suportada, um homem decide sempre sozinho.

30 janeiro 2011

OS ÓCULOS


Terminei ontem a publicação diária no FB do pequeno "folhetim" OS ÓCULOS. Foi uma experiência assaz interessante por dois motivos:
1 - Colocar todos os dias um post que fizesse sentido por si só e que se interligasse com os anteriores e com os seguintes sem perder o sentido global, mantendo o interesse dos leitores, pareceu-me desafiante.
Ao escritor obriga a uma disciplina e, sobretudo, exactidão, na escrita (no que quer dizer/contar)difíceis de conseguir, mas que é treino para outras "aventuras".

2 - Saber como funciona em termos afectivos uma rede virtual. Concluí, pelos comentários finais, talvez precipitadamente, que, salvo raríssimas excepções, apenas os meus amigos tiveram a paciência e curiosidade de ler o "folhetim" e tiveram a amabilidade de dizer que gostaram.
Não acredito que não haja quem tenha achado mau, despropositado, sem pés nem cabeça. Pretensioso, até.