19 fevereiro 2011

O TEU CORPO


Foto de David retirada de "Olhares fotografia on-line"





O TEU CORPO


Mornas,

seduzidas manhãs,

despertadas dos teus olhos.


Beijos perdidos,

em prolongadas viagens no arco dos teus seios,

embalados em murmurados sons desprendidos

dos teus lábios em sopro ardente, de desejo.


Quentes,

aveludadas margens

de incontidas madrugadas fluindo rumo

ao cume do prazer.



Ternas carícias,

nascidas das pontas dos teus dedos

em passagens de volúpia,

desvanecidas ao ritmo que nascidas.



Sublime tempo

Desfrutando a tua imagem.

"Pepe Carvalho", Vásquez Montalban

Para quem é adepto de "policiais", depois de ter escrito sobre Maigret, e trepando na escala da literatura, deixo um flavour a uma personagem de contornos muito especiais e que, quanto a mim, é daquelas que nos põe perante uma pergunta óbvia, mas de difícil resposta: até que ponto estes detectives particulares, policias, investigadores não são ao fim-ao-cabo um alter ego dos escritores.

O personagem a que me refiro é Pepe Carvalho, detective particular, catalão, ex-comunista, ex-agente da CIA, ex-tudo, excepto gastrónomo (a gastronomia de Carvalho está para Montalban, como o cachimbo de Maigret está para o de Simenon, ou a heroína de Sherlock Holmes para a de Conan Doyle) que é uma das suas características peculiares e é na comida onde vai buscar as forças retemperadoras para deslindar os seus casos (o contraponto de Pepe Carvalho é o cozinheiro Biscuter).

Pepe Carvalho merece uma visita, mais que não seja para aprender a fazer uma omeleta em "O Quinteto de Buenos Aires", ou para melhor conhecer Barcelona em "A Barcelona perdida de Pepe Carvalho".

Ao escrever sobre policiais estou a meter-me em domínios que são do catedrático na matéria Francisco José Viegas. Gostava de um dia trocar com ele umas impressões sobre o assunto

Maigret e ...", de Georges Simenon

Prometi que um dia destes comentaria sobre o meu dilecto inspector policial da galeria dos mais conhecidos: o Comissário Maigret.

O Comissário Maigret, personagem ficcionada por Georges Simenon que aparece em cerca de 100 novelas é um daqueles filões em que autores e editoras têm a sorte de tropeçar um dia. Os leitores adoptam a personagem como membro da família, ou como vizinho que cumprimentam e com quem falam com familiariedade. Estou em crer que Simenon produziu Maigret por razões económicas e não exclusivamente por razões literárias. Nada de criticável, a não ser a destruição do nosso ideal de artista que produz arte pela arte e que despreza o dinheiro e os caros prazeres da vida .
E, Senhor, quando começa a dar dinheiro é tão fácil cair em tentação e não se mata a galinha dos ovos de ouro. Hoje a mina a explorar parece ser a dos vampiros.

A minha predilecção pelo Comissário Maigret vem da caracterização da personagem, muito mais próxima do inspector de polícia normal: funcionário de uma instituição (não que cumpra o horário das 9 às 5), lento na acção, falsamente displicente no raciocínio, que baseia na lógica, na intuição, na argúcia (e não nos novos métodos tecnológicos de investigação - ainda nem existia a identificação do ADN). Vive uma vida própria rotineira, é casado com Madame Maigret, tiveram infortúnio de filha falecida à nascença, bebedor com alguma tendência para o vício, fumador de pipe (cachimbo) que terá pedido emprestado ou mesmo surripiado ao seu criador, Simenon. Vive, ou faz transparecer que vive, num estado de abatimento, talvez depressivo, permanente.

Como outros autores de "policiais" Georges Simenon também arranja para Maigret um contaponto para que o protagonista possa expor as suas teorias e sobretudo a sua experiência e capacidade superior de raciocínio. Neste caso, ao invés dos Dr. Watson, tratam-se de figuras normais como os companheiros de trabalho (policiais menos categorizados), ou por vezes a Madame Maigret, esta batendo-o aos pontos em matéria de argúcia.
Maigret tem ainda uma propensão que convém ao leitor não descuidar enquanto lê, que é a sua "quase simpatia" para com o criminoso. analisando o móbil do crime pelo lado psicológico e tentando perceber que "desgraças da vida" terão "forçado" o culpado a cometer o delito.

O autor tem ainda o cuidado (não sei se consciente) de criar em todas os romances um ambiente cinzento, desconfortável, frio (a que não é alheio o sobretudo de Maigret, que usa mesmo em tempo quente), e de nos ser capaz de incluir na história. Não será difícil imaginarmo-nos a beber um pastis e a discutirmos pessoalmente o caso com o Comissário.

Estava tentado a não fazer uma recomendação. "Maigret e porto das brumas", um gosto muito pessoal, mais nada.

18 fevereiro 2011

"Confissão tardia"

O meu primeiro romance, "O homem que viveu duas vezes", nasceu com outro título: "Os homens voam acima dos pássaros"

Concordei em mudar o título submergido pelo argumentos do marketing, público-alvo, primeira obra, etc...
Estou convencido que vendeu razoavelmente para autor desconhecido, mas que o título foi completamente indiferente.

Hoje, tenho pena de não ter levantado voo e ter mantido o título inicial. É tão mais bonito e melodioso os homens voam acima dos pássaros.

17 fevereiro 2011

"OS ÓCULOS", folhetim do Facebook,

J. Brueghel, o Velho, ca. 1609-1612. Virginia Museum of Fine Arts, Richmond

A instâncias de alguns amigos que não seguiram ou se perderam no meu "folhetim", OS ÓCULOS, do FB, aqui fica o texto completo. A intenção original perde-se, mas se ganhar mais leitores, vale a pena.

OS ÓCULOS

A névoa. A névoa ocular. Neblina perene ondulante, quase transparente, nem sim, nem não, como tule de cortinado. Imaterial, envolvente de pessoas e objectos. Evolvente da própria luz.
Os meus olhos ajustam-se constantemente para perfurarem esta névoa cada dia mais espessa, todos os dias mais leitosa, que dilui os contornos de figuras conhecidas. Agora instintivamente reconhecidas.
Sou forçado a semicerrar as pálpebras, a franzir a testa para ver ao longe e ao perto, para ver o que está entre o longe e o perto.
Sou forçado a semicerrar as pálpebras, a franzir a testa para ver ao longe e ao perto, para ver o que está entre o longe e o perto.
As pestanas tocam-se ao de leve deixando passar apenas o que quero ver. No meu íntimo, apenas o que pretenderia ver.
Num esforço continuado dos músculos faciais foco as formas da outra ponta da mesa: as mais brumosas e que mais me custam a distinguir. Maria Marta, lá estava ela, no outro topo. Mesa comprida acrescentada de mesas de acrescento, unidas pela toalha enorme que encobre as juntas tornando-as numa única mesa comprida circundada de desirmanadas cadeiras que se arrebanham pelos quartos e até de bancos da cozinha para sentar o clã que se aglomera lá em casa no Dia de Natal.
Já se experimentaram refeições volantes, ciranda-se de um lado para o outro de prato na mão, pousa-se o copo e bebe-se do do vizinho, deixa-se cair a faca com grande mancha na carpete, deixa lá, isso depois limpa-se. Remiro o tapete e mesmo com a névoa sou capaz de distinguir as sucessivas manchas dos sucessivos anos. Acaba todos sentados em volta da mesa.
Este é o espaço cénico dos repastos da família, cada vez mais enevoados pelo meu decréscimo de visão que se vai acentuando de festejo para festejo.
Enevoado porque me recuso a pôr os óculos num reflexo de rejeição da degeneração e decadência do corpo. Para já é só a vista, só ela me impõe a precariedade das minhas faculdades de ser humano. Bem, não só: é a vista e a coluna. A coluna range perto do cachaço – C3, C4 dizem os médicos eufemisticamente, soando a jogada de xadrez. Mas, a coluna tem razões para doer que não advêm da velhice, Fiz umas tropelias, dei-lhe umas pancadas. Mas os olhos. Os olhos porquê? Aos olhos não, a esses tratei-os sempre bem e eles, ingratos, vão-me paulatinamente abandonando.
Maria Marta, a minha irmã mais nova, é quem mais me custa a divisar lá longe, bem longe, num dos lugares na outra extremidade da mesa. Lugar que ocupava desde os tempos em que crescera o suficiente para passar da mesa das crianças para a mesa dos crescidos. Não era apenas ela que conservava o lugar. Todos nós, mais ou menos, mantínhamos as nossas posições. Não fora tudo se manter como sempre e eu teria muito maior dificuldade em saber quem estava onde.
- Maria Marta, chamei.
Não me ligou. Não me ouviu entre o ruído das conversas, o barulho da televisão e a gritaria das crianças. Repeti o chamamento e dou conta que a força da voz segue as pisadas do decrescer da força da visão. Também a voz se apouca e tem a mesma dificuldade em atravessar o comprimento da mesa. Mas, o não levantar a voz de modo a ser ouvido talvez não seja resultado de falta de capacidades, mas de falta de vontade.
- Maria Marta, insisti.
Entre as brumas pareceu-me distinguir uma mão que lhe tocava no braço e depois apontava para mim dando-lhe conta de que eu reclamava a sua atenção.
- O que é mano?
- Que é feito daquele teu afilhado de guerra? Alguma vez soubeste alguma coisa dele?
A voz dela tremeu:
- Que disparate. Do que te havias de lembrar. Que interesse é que isso tem?
Fiz um gesto de desinteresse e de encolher de ombros. Lembrara-me, mais nada.
-Lembrei-me, Maria Marta. Como algo é tão importante em certas ocasiões da nossa vida, e, depois...depois a importância perde-se. É curioso ver o alvoroço em que andavas com o rapaz....com a guerra do ultramar, com o Movimento Nacional Feminino...
Os olhos dela flamejaram de raiva. A esta distância da mesa, tenho quase a certeza de que flamejaram.
As minhas cartas devem-lhe ter servido para alguma coisa. Eram importantes nessa altura. E a importância das coisas também não é para ser eterna.
As coisas são realmente importantes quando a importância perdura ao longo do tempo, pensei eu, será que a constância destas festas familiares as torna importantes?
Perto de mim dou conta que a vida se faz de equilíbrios. A avó, mais de noventa anos, conserva a vista e, sem óculos, vai pondo de lado as espinhas do bacalhau, sem falhar uma, mas depois, com o garfo, as lascas tem de as desfiar a contento porque o corpo já a privou da dentição rija dos carnívoros. E ela, como eu, recusa-se a usar a prótese dentária. Porém, a natureza, atendendo à idade, desapossou-a também da possibilidade de se lembrar de muitos de nós, mesmo que sem óculos nos veja as feições na perfeição.
De repente, o José António, o irmão do meio, ergue-se eufórico de copo na mão, vamos fazer um brinde! E todos se levantam de copo ao alto virados para mim, à minha espera, que permaneço sentado à cabeceira da mesa para onde fatalmente me empurram em todas as festas. A presidir. E eu sempre a pensar que se me deixassem ficar a meio da mesa teria o dobro da visão para cada um dos lados.
Um brinde, esperam que eu faça o discurso do brinde. Baixo os olhos porque sou recalcitrante em fazer discursos, pequenos que sejam; baixo os olhos porque sei que todos me olham e eu sem conseguir destrinçar-lhes as pupilas, sem conseguir, portanto, ver-lhes a alma.
Depois do tilintar dos copos, ai com água não, ainda não toquei no teu, o José António invariavelmente rememorava a todos, aos que tinham presenciado a cena – já poucos - e aos que ouviram contar a história ao longo de décadas o seu grito do Ipiranga para a maioridade, quando com uns catorze anos, muito corado, se levantara e propusera um brinde com vinho tinto para mostrar ao pai que já bebia álcool. Várias vezes instado (trocistamente, diga-se de passagem) a contar o sucedido, ao longo dos anos aprimorara a teatralização da cena entre o dramático e o natural. E empertigava-se muito hirto mostrando um olhar de aço como aquele com que enfrentara o pai.
O Zé António apanha-me sistematicamente do lado oposto da mesa fazendo eu de pai, fazendo de mim pai. Eu disfarço conversando com quem me está próximo rodando o dedo pelo bordo do copo em círculos consecutivos. Nunca contracenei com ele, nunca lhe dei a deixa das palavras do pai e jamais asseverei ou contraditei que os gestos e ditos se tivessem passado exactamente como conta. Para ele isto é o contínuo renovar do triunfo da emancipação porque o meu silêncio é entendido como aval de testemunho presencial. Sempre teorizei que a indiferente condescendência do pai tinha assassinado o grito de revolta do meu irmão. Ao fim de todos estes anos e representações julgo que já nem o próprio sabe a versão original.
A tia Glória chegou esbaforida.
A tia Glória chegava sempre atrasada. Escolhera profissão, nos seus tempos, destinada às mulheres: enfermeira. Não por gosto, mas por desígnio do irmão, o nosso pai. Enfermeira, era uma espécie de freira enclausurada em plena liberdade.
Pergunto-me se aquelas batas brancas penduradas a secar na corda da roupa, penduradas atrás das portas seriam o prenúncio da névoa leitosa que hoje me embacia o olhar quando por teimosia dispenso as lunetas? Lembro-me da Tia Glória chegar a casa com o seu casaco de malha branco pelas costas abotoado apenas no botão de cima, vasculhando a correspondência apanhada da caixa do correio afanosamente procurando missivas, embora não tivesse quem lhe escrevesse.
-Tia Glória! – exclamámos com entusiasmo trocista.
- Ai, filhos, desculpai o atraso, está um trânsito.
- No Dia de Natal, tia?
Senti uma mão sobre a minha transmitindo um calor suave em sinal de retracção para evitar entrar em rezinguisses com a minha tia. Pus outra mão por cima da que me afagava e olhei com ternura imensa a minha mulher sentada ao meu lado esquerdo. Adaptei a visão para a ver. Ao perto ainda vejo mais ou menos, as formas são nítidas, só me custa é a ler.
Recuso definitivamente a bengala ocular, recusando a degenerescência do corpo, numa tentativa frustrada de atrasar as incapacidades. Agora, são os olhos, depois as pernas, depois o cérebro, depois sem lá o quê. Não quero envelhecer.
De novo procuro o José naquela roda. Lá estou eu a franzir a testa de novo. Ah! José! Estás aí. Entre os teus filhos. Que parecenças foste buscar ao pai, meu Deus! E como os teus três filhos são todos tão iguais a ti. Eu não sei a quem saio, umas vezes parece-me que me pareço com a mãe, com a mãe não, com a avó Augusta, mãe da mãe; outras tantas vezes inclino-me para aquele olhar do pai de uma dureza calma e quase se diria terna. Dizem que os seres humanos tomam a fisionomia de quem lhes está próximo: o menino-lobo de orelhas pontiagudas; ou o menino-galinha com a boca afilada de debicar o chão. Será que tomei as formas de quem me sentia afectivamente mais chegado no momento? Em pequeno queria ter os apelidos do pai em detrimento dos da mãe, depois achei que as coisas estavam no seu lugar tendo uma marca de cada progenitor.
- Pai, alguma vez tiveste medo? – perguntou-me o meu filho de chofre.
- Medo?
Vagarosamente coloquei os óculos. Foi a única vez que os pus. Para “ver” a pergunta.
- Medo? O teu pai? Nem por sombras – interpôs-se a Maria Marta na conversa - O teu pai só tem medo de não ser perfeito. A imperfeição, a ele, causa-lhe pavor. E então a dele, não te digo nada. Tem um medo dela que se pela.
Retorqui agastado:
- Pois, criticam-me da mania de querer ser perfeito e quando o não sou, nem que seja por acaso, caem-me todos em cima. Apontam-me ferozmente a minha falta.
- Ninguém te faz isso, pai – disse o meu filho
- Qualquer um de nós quando falha é criticado – acrescentou o José António na sua bonomia.
- E desculpado. Eu, não. A mim não me desculpam.
- ‘Tá bem, deixa-te disso. Tiveste ou não tiveste medo? – insistiu o meu filho.
A que vem isso a propósito? Queres conhecer as minhas fraquezas. Queres saber se tive medo? O medo não é uma frouxidão, é um sinal de alarme. Fraqueza é este definhamento da visão. Queria tanto poder ver-te, meu filho. Para sempre.
- Todos temos medo. Muitas vezes confundimos preocupações com medos… - respondi.
- Estou a perguntar daquele medo de ficar pregado ao chão.
- Não, desse não. – “Mentira, estou a mentir” – Nunca, nunca tive.
Neguei peremptório. A negação do medo afasta o medo. Momentaneamente talvez, mas nem por isso é remédio eficaz. Será que perdendo a visão deixamos de ver o medo? Deixamos de ver o que nos atormenta? O medo é tão interior.
- Medo de uma doença? De um sofrimento? Sei lá – perguntou a Maria Marta.
Os jantares de família dão nisto, conversas disparatadas, sem um rumo, sem uma conclusão. Chama-se a isto conviver, celebrar. A avó tinha passado das lascas de bacalhau aos fios de ovos; o Zé António batalhava com a mulher sobre a data em que tinham estado no Vimeiro; a tia Glória queixava-se das noites que tinha de fazer no hospital. Mais valia contarmos estórias uns aos outros. Eu gostava tanto quando o avô me sentava num joelho e me contava estórias.
A um aviso ciciado da minha mulher levanto-me para repor o vinho. Tenho de ir à cozinha abrir outra garrafa. Instintivamente pego nos óculos que seguro dobrados na mão.
Na cozinha não está ninguém. A névoa ocular distorce-me a realidade, a existência torna-se irreal, mas permite-me ver muito para além dos contornos. Estou sozinho, mas vejo-os a todos, até os vejo repetidos em diferentes idades, unidos como uma família, duvidando, por vezes, de serem da mesma família. Vejo nitidamente os vivos, vejo nitidamente os mortos, vejo nitidamente os vivos já mortos, vejo nitidamente os mortos ainda vivos.

A história desta família dava um romance. Eu até o escrevia, mas tenho esta mania de não querer pôr os óculos.

FIM

16 fevereiro 2011

"Citações literárias"

"se não esse deus ou esse nada volta-lhe as costas e cala-se. É por esta razão que os verdadeiros poetas, os inspirados, levam uma vida diferente da dos outros homens, geralmente irregular,às vezes extravagante, e nunca feliz.", de Gonzalo Torrente Ballester, in Dafne e Fantasias.

De onde vem este sentimento, antigo como os tempos, que a obra-de-arte é fruto da dor e do desassossego?

15 fevereiro 2011

"A rapariga dinamarquesa", de David Ebershoff, Porto Editora

Há dias assim. O azar bate à porta e não há nada a fazer.
Normalmente pego num livro e, mesmo que em trabalhos forçados, levo-o até ao fim. Raros, raríssimos são aqueles que deixo a meio.
"A rapariga dinamarquesa", de David Ebershoff, 2000, editado pela "Porto Editora" em 2010, atraiu-me pela sinopse e curriculum do autor, bem como pelo tema tratado, a operação para mudança de sexo levada a cabo por um pintor dinamarquês Einer Wergener, na primeira metade do séc. XX e caiu, talvez sem culpa, neste meu pequeno catálogo de livros com leitura por acabar.
Apesar de ser pouco curial dar uma opinião definitiva sobre algo que não se conhece (pelo menos na totalidade), atrevo-me a reflectir sobre as primeiras 100 páginas do livro.
O autor, David Ebershoff, tem um bom começo, mas de seguida a história desenvolve-se numa espécie de círculos concêntricos numa tentativa de explicar os primórdios da situação que desembocará no que (antevejo) será o desfecho. Esses círculos seriam justificáveis se cada um deles aportasse realmente algo de novo e, metaforicamente, poderiam até ser entendidos como cada uma das camadas da personalidade de Einer que se vai desvendando conforme se vai interiorizando (aliás, exteriorizando) a vontade de mudança de género.
De notar, ainda, que um tema como este, acrescendo-lhe a época em que se passa, coloca um confronto pessoal com o próprio e com o exterior que necessitaria de uma escrita com uma intensidade dramática muito mais intensa desde o princípio ao fim do livro e que está praticamente ausente nas primeiras 100 páginas.
Há dias assim, vou colocar o livro na estante no lugar dos não-lidos. Merece uma segunda oportunidade porque o livro tem uma personagem que me parece fascinante, Greta, a mulher do pintor, Greta.

14 fevereiro 2011

"Património", de Philip Roth, Edições D. Quixote

O livro é demasiado conhecido e publicado em 2008 já teve as recensões e críticas suficientes para agora voltar ao mesmo.
No entanto, tendo e atenção os casos recentes de idosos encontrados mortos ao abandono, a história de "Património", que é um testemunho pessoal do próprio Philip Roth, tem o condão de, de uma forma aparentemente "ligeira", ao correr da pena, contando episódios "desinteressantes" da vida de um velho, se revelam de uma crueza e de uma contundência extremas.
Oiço falar da 3ª e 4ª idades como uma das grandes oportunidades de negócio do futuro, sobretudo, na área dos cuidados de saúde secundários e acompanhamento (no significado de fazer companhia). Mas, para além da forma desumanizada como o assunto é abordado, este negócio é um nicho de mercado, pois cobrirá 10%, se tanto, dos 600.000 idosos em Portugal, muitos vivendo em áreas desertificadas.
Ler o livro de Roth, nesta ocasião, para além de uma escrita e tradução excelentes, pode levar-nos a rever o(s) relacionamento(s) humano(s).

13 fevereiro 2011

"O Gato", de Georges Simenon e os casos dos idosos mortos ao abandono

Os casos de três idosos sós encontrados mortos nas suas residências ao fim de bastane tempo lembrou-me um livro de Georges Simenon, "O Gato" (existe em português, possivelmente em alfarrabistas), novela que desde que a li fiquei com a firme ideia de que se debruçava sobre a solidão humana.
Trata-se da história de um casal, na casa dos 70 anos (perto da morte pois quando o livro foi escrito, 1967, a esperança de vida não é a que é hoje), partilhando a mesma habitação, deitando-se na mesma cama, apenas se comunica através de pequenas notas escritas e através das implicações mútuas contínuas. Cada membro do casal tem o seu animal de estimação, um papagaio e um GATO, e ambos se entretêm em velhacarias ao animal oposto para atingirem e magoarem o respectivo dono.
Georges Simenon descreve,com uma linearidade contundente uma relação e um ambiente em que não se troca uma palavra (falada). Por razões óbvias não desvendo o final da novela, mas digo que é uma das mais espantosas obras que li até hoje e que perante os casos citados no início deste texto me deixa na perplexidade de considerar o livro "O Gato" um livro sobre a solidão, ou se será um livro sobre dois seres humanos que, percebendo que o são, se acompanham até ao fim da vida apesar das animosidades existentes entre ambos.
"O Gato", da fase "grave" (assim denominada pelo próprio)de Georges Simenon, mostra que as sociedades modernas não podem marginalizar alguns dos seus membros (e os velhos na sociedade ocidental são cada vez mais) mesmo que os "odeiem".

"Cohecer Lisboa"

"Prémio Autores 2011 SPA/RTP

Cruz, Mota, Tavares e Tordo nomeados para prémio SPA/RTP


Afonso Cruz, Gonçalo M. Tavares, António Mota e João Tordo estão entre os nomeados para o Prémio Autores 2011 SPA/RTP.
Afonso Cruz e António Mota foram nomeados na categoria «Literatura - Melhor Livro de Literatura Infanto-Juvenil», com os livros «A Contradição Humana» (texto e ilustrações de Afonso Cruz, publicado pela Caminho em 2010) e «Pinguim» (António Mota, Gailivro 2010, ilustrações de Alberto Faria).

Gonçalo M. Tavares e João Tordo foram nomeados com os livros «Uma Viagem à Índia» (Caminho 2010) e «O Bom Inverno» (Dom Quixote 2010) na categoria «Literatura - Melhor Livro de Ficção Narrativa».

"As dez figuras negras", de Agatha Christie

Uma amiga minha colocou ontem no seu blogue Refúgio dos livros (http://refugio-dos-livros.blogspot.com/) uma opinião sobre "Um Crime no Expresso Oriente",de Agatha Christie e diz que se prepara para ler "As dez figuras negras", o qual, para mim, sem ter lido toda a sua obra se trata do seu melhor livro.
Ao longo da sua carreira literária, Agatha Christie explorou, com inegável êxito, uma fórmula de sucesso que se baseia:
1 - ter um personagem com dotes e apetências especiais para desvendar mistérios (mais mistérios, do que crimes)- Poirot e Miss Marple;
2 - ter, a par do investigador principal, um "acompanhante" (sempre menos dotado) que o confronta intelectualmente para que nos diálogos aquele possa expor as suas teorias;
3 - Concentrar os presumíveis culpados num universo restrito do qual não podem "escapar" acabando, por vezes, no cliché de todos reunidos numa sala onde na cena final o investigador leva a asistência (leitores e outros personagens da história a descobrirem o culpado, porquanto ele investigador já estava na posse (e leitor também deveria estar) das provas irrefutáveis da culpa.

Agatha Christie não escreveu grandes romances (policiais, não gosto do termo), mas o que fez, fez bem feito. Criou duas personagens que lhe permitiram exteriorizar toda a sua imaginação (que para escrever cerca de 85 livros, seria bastante fértil), uma, julgo eu, o seu émulo,Miss Marple, outra a sua antítese,Hercule Poirot.

No entanto, o livro que mais aprecio é "As dez figuras negras" ("The ten little niggers", título original que, já então, 1940, passou a "And then they were no more",devido a polémicas racistas, no qual a autora deixa os "criminosos" num espaço concentacionário, uma ilha, e desporovidos de "protecção", os nossos habituais investigadores. Aqui o desvendar do mistério está totalmente entregue nas mãos (mente) do leitor e para o qual não há um contra-ponto para em racicínios lógicos ir excluindo hipóteses aproxiando-se da verdade final.
Muito se tem escrito sobre a caracterização e descrição psicológica das personagens de A.Christie, quer dos "detectives", quer dos outros, na qual se baseia muitas vezes a motivação dos crimes e a resolução dos mesmos. Uma das razões pela qual considero "As dez figuras negras" o melhor livro de A. Christie é por ser aquele em que a psicologia (do caso) e das personagens me parece a mais conseguida (até por se libertar da caracterização de Poirot e Miss Marple, que julgo intencionalmente mais caricaturadas do que caracteizadas).
Com um golpe-de-asa, que não vislumro por que não aconteceu, A. Christie passou ao lado de um excelente romance, caindo ela prórpria no impasse final de "não saber" como desvendar o mitério, fazendo-o de um modo que não lhe é habitual.
No blogue da minha amiga escrevi em comentário que Agatha Christie é a Enyd Blyton (a dos livros dos 5) dos mais crescidos, o que tem como significado: sem dúvida a ler, para passar a voos mais altos).
A ASA teve a iniciativa, já há algum tempo, de reeditar as obras de Agatha Chritie, agrupando-as por Séries - Poirot, Miss Marple, Outros.

Hoje está a chover, se tiver à mão "O Assassinato de Roger Ackroyd", "Um corpo na Biblioteca", ou até a série Poirot que passa diariamente na RTP Memória, aproveite, que não é tempo desperdiçado.

Voltarei aos livros "policiais" com o meu preferido da galeria dos mais conhecidos.