17 fevereiro 2011

"OS ÓCULOS", folhetim do Facebook,

J. Brueghel, o Velho, ca. 1609-1612. Virginia Museum of Fine Arts, Richmond

A instâncias de alguns amigos que não seguiram ou se perderam no meu "folhetim", OS ÓCULOS, do FB, aqui fica o texto completo. A intenção original perde-se, mas se ganhar mais leitores, vale a pena.

OS ÓCULOS

A névoa. A névoa ocular. Neblina perene ondulante, quase transparente, nem sim, nem não, como tule de cortinado. Imaterial, envolvente de pessoas e objectos. Evolvente da própria luz.
Os meus olhos ajustam-se constantemente para perfurarem esta névoa cada dia mais espessa, todos os dias mais leitosa, que dilui os contornos de figuras conhecidas. Agora instintivamente reconhecidas.
Sou forçado a semicerrar as pálpebras, a franzir a testa para ver ao longe e ao perto, para ver o que está entre o longe e o perto.
Sou forçado a semicerrar as pálpebras, a franzir a testa para ver ao longe e ao perto, para ver o que está entre o longe e o perto.
As pestanas tocam-se ao de leve deixando passar apenas o que quero ver. No meu íntimo, apenas o que pretenderia ver.
Num esforço continuado dos músculos faciais foco as formas da outra ponta da mesa: as mais brumosas e que mais me custam a distinguir. Maria Marta, lá estava ela, no outro topo. Mesa comprida acrescentada de mesas de acrescento, unidas pela toalha enorme que encobre as juntas tornando-as numa única mesa comprida circundada de desirmanadas cadeiras que se arrebanham pelos quartos e até de bancos da cozinha para sentar o clã que se aglomera lá em casa no Dia de Natal.
Já se experimentaram refeições volantes, ciranda-se de um lado para o outro de prato na mão, pousa-se o copo e bebe-se do do vizinho, deixa-se cair a faca com grande mancha na carpete, deixa lá, isso depois limpa-se. Remiro o tapete e mesmo com a névoa sou capaz de distinguir as sucessivas manchas dos sucessivos anos. Acaba todos sentados em volta da mesa.
Este é o espaço cénico dos repastos da família, cada vez mais enevoados pelo meu decréscimo de visão que se vai acentuando de festejo para festejo.
Enevoado porque me recuso a pôr os óculos num reflexo de rejeição da degeneração e decadência do corpo. Para já é só a vista, só ela me impõe a precariedade das minhas faculdades de ser humano. Bem, não só: é a vista e a coluna. A coluna range perto do cachaço – C3, C4 dizem os médicos eufemisticamente, soando a jogada de xadrez. Mas, a coluna tem razões para doer que não advêm da velhice, Fiz umas tropelias, dei-lhe umas pancadas. Mas os olhos. Os olhos porquê? Aos olhos não, a esses tratei-os sempre bem e eles, ingratos, vão-me paulatinamente abandonando.
Maria Marta, a minha irmã mais nova, é quem mais me custa a divisar lá longe, bem longe, num dos lugares na outra extremidade da mesa. Lugar que ocupava desde os tempos em que crescera o suficiente para passar da mesa das crianças para a mesa dos crescidos. Não era apenas ela que conservava o lugar. Todos nós, mais ou menos, mantínhamos as nossas posições. Não fora tudo se manter como sempre e eu teria muito maior dificuldade em saber quem estava onde.
- Maria Marta, chamei.
Não me ligou. Não me ouviu entre o ruído das conversas, o barulho da televisão e a gritaria das crianças. Repeti o chamamento e dou conta que a força da voz segue as pisadas do decrescer da força da visão. Também a voz se apouca e tem a mesma dificuldade em atravessar o comprimento da mesa. Mas, o não levantar a voz de modo a ser ouvido talvez não seja resultado de falta de capacidades, mas de falta de vontade.
- Maria Marta, insisti.
Entre as brumas pareceu-me distinguir uma mão que lhe tocava no braço e depois apontava para mim dando-lhe conta de que eu reclamava a sua atenção.
- O que é mano?
- Que é feito daquele teu afilhado de guerra? Alguma vez soubeste alguma coisa dele?
A voz dela tremeu:
- Que disparate. Do que te havias de lembrar. Que interesse é que isso tem?
Fiz um gesto de desinteresse e de encolher de ombros. Lembrara-me, mais nada.
-Lembrei-me, Maria Marta. Como algo é tão importante em certas ocasiões da nossa vida, e, depois...depois a importância perde-se. É curioso ver o alvoroço em que andavas com o rapaz....com a guerra do ultramar, com o Movimento Nacional Feminino...
Os olhos dela flamejaram de raiva. A esta distância da mesa, tenho quase a certeza de que flamejaram.
As minhas cartas devem-lhe ter servido para alguma coisa. Eram importantes nessa altura. E a importância das coisas também não é para ser eterna.
As coisas são realmente importantes quando a importância perdura ao longo do tempo, pensei eu, será que a constância destas festas familiares as torna importantes?
Perto de mim dou conta que a vida se faz de equilíbrios. A avó, mais de noventa anos, conserva a vista e, sem óculos, vai pondo de lado as espinhas do bacalhau, sem falhar uma, mas depois, com o garfo, as lascas tem de as desfiar a contento porque o corpo já a privou da dentição rija dos carnívoros. E ela, como eu, recusa-se a usar a prótese dentária. Porém, a natureza, atendendo à idade, desapossou-a também da possibilidade de se lembrar de muitos de nós, mesmo que sem óculos nos veja as feições na perfeição.
De repente, o José António, o irmão do meio, ergue-se eufórico de copo na mão, vamos fazer um brinde! E todos se levantam de copo ao alto virados para mim, à minha espera, que permaneço sentado à cabeceira da mesa para onde fatalmente me empurram em todas as festas. A presidir. E eu sempre a pensar que se me deixassem ficar a meio da mesa teria o dobro da visão para cada um dos lados.
Um brinde, esperam que eu faça o discurso do brinde. Baixo os olhos porque sou recalcitrante em fazer discursos, pequenos que sejam; baixo os olhos porque sei que todos me olham e eu sem conseguir destrinçar-lhes as pupilas, sem conseguir, portanto, ver-lhes a alma.
Depois do tilintar dos copos, ai com água não, ainda não toquei no teu, o José António invariavelmente rememorava a todos, aos que tinham presenciado a cena – já poucos - e aos que ouviram contar a história ao longo de décadas o seu grito do Ipiranga para a maioridade, quando com uns catorze anos, muito corado, se levantara e propusera um brinde com vinho tinto para mostrar ao pai que já bebia álcool. Várias vezes instado (trocistamente, diga-se de passagem) a contar o sucedido, ao longo dos anos aprimorara a teatralização da cena entre o dramático e o natural. E empertigava-se muito hirto mostrando um olhar de aço como aquele com que enfrentara o pai.
O Zé António apanha-me sistematicamente do lado oposto da mesa fazendo eu de pai, fazendo de mim pai. Eu disfarço conversando com quem me está próximo rodando o dedo pelo bordo do copo em círculos consecutivos. Nunca contracenei com ele, nunca lhe dei a deixa das palavras do pai e jamais asseverei ou contraditei que os gestos e ditos se tivessem passado exactamente como conta. Para ele isto é o contínuo renovar do triunfo da emancipação porque o meu silêncio é entendido como aval de testemunho presencial. Sempre teorizei que a indiferente condescendência do pai tinha assassinado o grito de revolta do meu irmão. Ao fim de todos estes anos e representações julgo que já nem o próprio sabe a versão original.
A tia Glória chegou esbaforida.
A tia Glória chegava sempre atrasada. Escolhera profissão, nos seus tempos, destinada às mulheres: enfermeira. Não por gosto, mas por desígnio do irmão, o nosso pai. Enfermeira, era uma espécie de freira enclausurada em plena liberdade.
Pergunto-me se aquelas batas brancas penduradas a secar na corda da roupa, penduradas atrás das portas seriam o prenúncio da névoa leitosa que hoje me embacia o olhar quando por teimosia dispenso as lunetas? Lembro-me da Tia Glória chegar a casa com o seu casaco de malha branco pelas costas abotoado apenas no botão de cima, vasculhando a correspondência apanhada da caixa do correio afanosamente procurando missivas, embora não tivesse quem lhe escrevesse.
-Tia Glória! – exclamámos com entusiasmo trocista.
- Ai, filhos, desculpai o atraso, está um trânsito.
- No Dia de Natal, tia?
Senti uma mão sobre a minha transmitindo um calor suave em sinal de retracção para evitar entrar em rezinguisses com a minha tia. Pus outra mão por cima da que me afagava e olhei com ternura imensa a minha mulher sentada ao meu lado esquerdo. Adaptei a visão para a ver. Ao perto ainda vejo mais ou menos, as formas são nítidas, só me custa é a ler.
Recuso definitivamente a bengala ocular, recusando a degenerescência do corpo, numa tentativa frustrada de atrasar as incapacidades. Agora, são os olhos, depois as pernas, depois o cérebro, depois sem lá o quê. Não quero envelhecer.
De novo procuro o José naquela roda. Lá estou eu a franzir a testa de novo. Ah! José! Estás aí. Entre os teus filhos. Que parecenças foste buscar ao pai, meu Deus! E como os teus três filhos são todos tão iguais a ti. Eu não sei a quem saio, umas vezes parece-me que me pareço com a mãe, com a mãe não, com a avó Augusta, mãe da mãe; outras tantas vezes inclino-me para aquele olhar do pai de uma dureza calma e quase se diria terna. Dizem que os seres humanos tomam a fisionomia de quem lhes está próximo: o menino-lobo de orelhas pontiagudas; ou o menino-galinha com a boca afilada de debicar o chão. Será que tomei as formas de quem me sentia afectivamente mais chegado no momento? Em pequeno queria ter os apelidos do pai em detrimento dos da mãe, depois achei que as coisas estavam no seu lugar tendo uma marca de cada progenitor.
- Pai, alguma vez tiveste medo? – perguntou-me o meu filho de chofre.
- Medo?
Vagarosamente coloquei os óculos. Foi a única vez que os pus. Para “ver” a pergunta.
- Medo? O teu pai? Nem por sombras – interpôs-se a Maria Marta na conversa - O teu pai só tem medo de não ser perfeito. A imperfeição, a ele, causa-lhe pavor. E então a dele, não te digo nada. Tem um medo dela que se pela.
Retorqui agastado:
- Pois, criticam-me da mania de querer ser perfeito e quando o não sou, nem que seja por acaso, caem-me todos em cima. Apontam-me ferozmente a minha falta.
- Ninguém te faz isso, pai – disse o meu filho
- Qualquer um de nós quando falha é criticado – acrescentou o José António na sua bonomia.
- E desculpado. Eu, não. A mim não me desculpam.
- ‘Tá bem, deixa-te disso. Tiveste ou não tiveste medo? – insistiu o meu filho.
A que vem isso a propósito? Queres conhecer as minhas fraquezas. Queres saber se tive medo? O medo não é uma frouxidão, é um sinal de alarme. Fraqueza é este definhamento da visão. Queria tanto poder ver-te, meu filho. Para sempre.
- Todos temos medo. Muitas vezes confundimos preocupações com medos… - respondi.
- Estou a perguntar daquele medo de ficar pregado ao chão.
- Não, desse não. – “Mentira, estou a mentir” – Nunca, nunca tive.
Neguei peremptório. A negação do medo afasta o medo. Momentaneamente talvez, mas nem por isso é remédio eficaz. Será que perdendo a visão deixamos de ver o medo? Deixamos de ver o que nos atormenta? O medo é tão interior.
- Medo de uma doença? De um sofrimento? Sei lá – perguntou a Maria Marta.
Os jantares de família dão nisto, conversas disparatadas, sem um rumo, sem uma conclusão. Chama-se a isto conviver, celebrar. A avó tinha passado das lascas de bacalhau aos fios de ovos; o Zé António batalhava com a mulher sobre a data em que tinham estado no Vimeiro; a tia Glória queixava-se das noites que tinha de fazer no hospital. Mais valia contarmos estórias uns aos outros. Eu gostava tanto quando o avô me sentava num joelho e me contava estórias.
A um aviso ciciado da minha mulher levanto-me para repor o vinho. Tenho de ir à cozinha abrir outra garrafa. Instintivamente pego nos óculos que seguro dobrados na mão.
Na cozinha não está ninguém. A névoa ocular distorce-me a realidade, a existência torna-se irreal, mas permite-me ver muito para além dos contornos. Estou sozinho, mas vejo-os a todos, até os vejo repetidos em diferentes idades, unidos como uma família, duvidando, por vezes, de serem da mesma família. Vejo nitidamente os vivos, vejo nitidamente os mortos, vejo nitidamente os vivos já mortos, vejo nitidamente os mortos ainda vivos.

A história desta família dava um romance. Eu até o escrevia, mas tenho esta mania de não querer pôr os óculos.

FIM

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