26 março 2011

"Baudolino", Umberto Eco, Difel

Umberto Eco escreveu um delicioso romance, "Baudolino", sobre um jovem campónio com muita lábia que se faz cair nas boas graças do Imperador Barbaroxa chegando a tornar-se seu filho adoptivo. Encetando viagem a paragens longínquas, como que por encanto ou obra do acaso as suas fantasias e aldrabices vão-se tornando factos históricos, ou seja, verdades.

Perante as primeiras páginas dos jornais de hoje e as notícias televisivas será que as fantasias dos nossos políticos (ora sobe o IVA, ora não sobe, ora vem o FMI, ora não vem) terão o mesmo destino que as de Baudolino.

E de todas as notícias a que mais assusta é "Cavaco convence Passos Coelho a desistir de auditoria às contas públicas" secundando "Comissão Europeia não quer auditoria". Percebe-se porque é que assusta: teme-se conhecer a verdade em toda a sua extensão.
Diz-se que não convém ter uma fotografia mais correcta da realidade porque isso pode pôr ainda mais em causa a nossa credibilidade e assustar os mercados. Mas, os mercados são feitos de gente como nós que perante as notícias publicadas reagem com a mesma (des)confiança com que nós reagimos.

Em tempos difíceis, para alguma descontracção e paz de espírito, ler com atenção o romance de Umberto Eco e deliciar-se com o seu universo fantasioso, onde não falta uma história de amor, pode ser um bom remédio.

25 março 2011

Tufões e tornados

Será que o jornal "i" teve o meu post de 22 de Março, "Tufões" como inspiração para a sua capa de hoje?


"Pássaros na Boca", Samantha Schweblin, Cavalo de Ferro


"Pássaros na boca" é uma colectânea de contos da argentina Samantha Schweblin,livro vencedor do Prémio Nacional das Artes e do Prémio Casa das Américas.

Composto por um conjunto de 18 contos que variam bastante de género e de tema é (quase) inevitável que o interesse e a qualidade tenha altos e baixos.
No entanto, a singularidade destes contos pode resumir-se ao facto de serem inconclusivos. Na sua maior parte a autora relata situações,umas mais verosímeis, outras mais do âmbito do fantástico, em que foca essencialmente as relações/tensões humanas, deixando o leitor num estado de inquietação. Sendo a autora oriunda do continente do realismo mágico, poderíamos dizer que "Pássaros na boca" é um livro de "amargura mágica". Exemplo disto são aqueles que considero os dois melhores contos: Mulheres desesperadas e Estepe.

Caso Samantha Schweblin tivesse esperado mais um pouco para publicar o seu livro teria na situação em que Portugal se encontra uma enorme fonte de inspiração.

23 março 2011

O debate sobre o PEC IV

O debate sobre o PEC IV era perfeitamente dispensável. Os discursos, as intervenções são exactamente iguais a tudo o que ouvimos durante quase uma semana quer pelos intervenientes, partidos, Governo, quer pelos comentadores e analistas políticos. O PEC foi hoje discutido onde deveria ser, no Parlamento, onde o povo está representado, mas do debate nada saiu que resolvesse os problemas económicos e financeiros do país. O país ficou entre a espada e a espada.

O único facto relevante foi o pré-anúncio de demissão do Primeiro-Ministro ao abandonar o hemiciclo depois do discurso de abertura de Teixeira dos Santos.

Para não dar por tão desperdiçar o tempo dos deputados (e o dinheiro dos contribuintes) com alguma benevolência podemos considerar que o debate teve uma utilidade: descobrir ao que se resumirá a campanha eleitoral dos diversos partidos. Pela primeira vez, os partidos do chamado arco do poder, PS, PSD, CDS, não prometerão melhoria das condições de vida (não acredito que cheguem a tal despudor). O PS, com o Eng.º José Sócrates na liderança, só poderá prometer o que seria a continuidade deste Governo e responsabilizará os partidos da oposição da crise política; PSD e CDS só poderão prometer medidas severas de austeridade (Passos Coelho já admitiu hoje subida de impostos, caso o PSD venha a ser Governo), mas dizendo que são mais competentes e que com eles o país terá credibilidade internacional e responsabilizará o Governo e o PS pela crise financeira.

Pela primeira vez, desde o 25 de Abril, a campanha não será a campanha alegre, os partidos, se quiserem ser sérios têm apenas para oferecer o que Churchill prometeu aos ingleses na 2ª Guerra Mundial: sangue, suor e lágrimas.

22 março 2011

Tufões

Sempre achei algo de carinhoso dar nome aos tufões, mais terno ainda porque os nomes escolhidos normalmente são femininos, tornando-os quase uma pessoa de família ou um amigo.
Em Portugal temos tido alguns fenómenos atmosféricos que embora causando alguns estragos pela sua pequenez e pouca frequência não são merecedores de nome. No entanto, os portugueses estão neste momento bem no centro de uma crise que em muito se assemelha a um tufão. E os nomes a dar-lhe podem ser vários: Déficite, Dívida, PECs, etc. Existe uma diferença, o tufão tem curta duração, a crise nem sequer se lhe adivinha o fim.
Independentemente, das causas, da bondade e eficácia das medidas do Governo, ou da realização de eleições antecipadas na esperança de acalmia dos mercados, o que é certo é que se a crise tem características destruidoras de tufão os portugueses devem convencer-se, desde já, que têm de viver um período de grandes dificuldades durante e após a passagem do fenómeno. E resumem-se estas dificuldades à mudança radical de padrões e estilos de vida, restrições no consumo e carência de alguns (quantos?) bens. O processo de desabituação será penoso, mas é inevitável.
A minha maior angústia foi assistir nos últimos dias à desmultiplicação dos políticos dos vários partidos em declaração e contra-declaração acusando-se mutuamente sem apresentarem uma solução de consenso.

20 março 2011

Dia Mundial da Poesia

Sou amante de poesia tal como sou católico. Sou, mas não pratico. Dos dois factos me penitencio.

Hoje, assinala-se mais um dia mundial: o da poesia. Para não o deixar passar em falso, o poema de Alexander O'Neill,






OS ALEGRES PROPÓSITOS

os sátrapas
pincharam fora

Está vazia a gamela?
É o que há.

Vamos ferver o osso da pobreza,
que é, desta vez, alegremente nossa?

É que a mesa corrida já está posta

"Património", de Philip Roth, D. Quixote

Propositadamente não coloquei este post ontem, Dia do Pai, dia que se quer simpático, festivo, com prendas e sorrisos.
Depois do jantar em família de ontem, ainda em evocação ao Dia do Pai recomendo hoje a leitura de "Património", de Philip Roth, livro onde o autor norte-americano rememora os últimos anos da vida do seu pai em luta com a velhice, o sofrimento e a doença. O filho acompanha de perto sofrendo com o pai.
Embora Roth não seja dos meus autores americanos preferidos, é inegável que este "Património" é uma obra poderosa. Esta definição "obra poderosa" em opinião literária tem pouco ou nenhum significado. No entanto, uso-a com sentido de que é uma obra com um poder (uma narrativa) imensa de nos fazer enfrentar questões que todos tentamos esquecer até à hora em que a realidade se apresenta na sua plenitude. Questões como:
- A relação pai/filho prolonga-se até onde? Em que medida é que a dor física reforça ou destrói os afectos. O complexo de Édipo, em que o filho "mata" o pai para se libertar, inverter-se-á no fim da vida do progenitor, na medida em que o filho não quer que o pai sofra e acabe por morrer?
- Na civilização ocidental a morte quer-se asséptica e liofilizada. Já só se vê o morto depois de arranjado pela funerária. Tendemos, no entanto, a esquecer, ou não querer lembrar que os dias, por vezes muitos, que antecedem a hora fatídica são de uma dureza atroz e que as pessoas cada vez menos estão preparadas para cuidar dos velhos. Então o que fazer com eles?

Philip Roth em "Património" revela o seu testemunho pessoal com o pai, Herman Roth, numa escrita realista e directa a que o leitor não ficará indiferente. Assim tenha entranhas suficientemente fortes para aguentar o livro até ao fim.