19 maio 2011

A arte de morder a língua

Cruzei-me com o senhor Palomar e depois de nos cumprimentarmos silenciosamente com um aperto de mão perguntei-lhe a opinião sobre o excessivo palavreado na contenda politico-partidária em Portugal (tenho muito em conta a sua opinião porque é pessoa muito culta e ponderada).

O senhor Palomar permaneceu em silêncio, o que não estranhei porque o senhor Palomar, avisadamente, morde a língua três vezes antes de fazer qualquer afirmação. À custa de tanto martirizar a língua certifica-se do acerto do que tem para dizer. Consta que passa meses calado.

O senhor Palomar preocupa-se ainda com a possibilidade de dizer ou não coisas. Explicou-me, em tempos, que quando todos falam demasiado o importante não é tanto dizer a coisa certa, mas dizê-la partindo de premissas e implicando consequências que dêem à coisa dita o seu máximo valor.

Enquanto permanecia expectante, mas paciente, pensei que na campanha eleitoral que se inicia neste fim-de-semana poderiam os candidatos, máquinas partidárias e afins seguirem o douto pensamento do senhor Palomar de morder a língua e a possibilidade de muitas vezes optarem pelo silêncio que implica uma arte do calar-se ainda mais difícil do que a arte do dizer.

Não emitiu uma única palavra o senhor Palomar durante o nosso breve encontro e sem uma palavra o senhor Palomar levou a mão esquerda ao chapéu, estendeu-me a direita, e partiu.

Segui também eu o meu caminho plenamente satisfeito com a resposta porque o silêncio-discurso está nas suas interrupções, ou seja, naquilo que de vez em quando se diz e que dá sentido àquilo que se cala.

(Baseado no texto "Acerca de morder a língua", de Italo Calvino in "Palomar")

18 maio 2011

PHILIP ROTH, Prémio Internacional Booker 2011

Philip Roth é um dos expoentes da literatura mundial. Foi galardoado (merecidamente) com o Prémio Internacional Booker 2011 pelo conjunto da sua obra.

Pergunta: o prémio é uma caminhada para o Nobel, ou é o temor que a Academia ande à procure de autores menores?

17 maio 2011

Lenda de Abel e Caim

Lenda
Abel e Caim encontraram-se depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e reconheceram-se de longe, porque ambos eram muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, fizeram uma fogueira e comeram. Guardavam silêncio, à maneira das pessoas cansadas quando declina o dia. No céu aparecia uma ou outra estrela, que ainda não recebera nome. À luz das chamas, Caim reparou na marca da pedra na testa de Abel e deixou cair o pão que ia levar à boca e pediu que lhe fosse perdoado o seu crime.
Abel respondeu:
- Tu mataste-me ou fui eu que te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como dantes.
_ Agora sei na verdade que me perdoaste - disse Caim -, porque esquecer é perdoar. Eu tratarei também de esquecer.
Abel disse devagar:
- É verdade. Enquanto dura o remorso dura a culpa.


(Jorge Luís Borges, in Obras Completas)

O perdão não alivia o ofensor, engrandece o ofendido.

16 maio 2011

"A Ponte sobre o Drina", Ivo Andric, Cavalo de Ferro


Ando atrasado nas leituras mas a pilha de livros vai-se acumulando como em construção de ziguarate de Babel na direcção o céu. Desde que escrevo também a velocidade de leitura se tornou mais lenta estudando os textos e muitas vezes mastigando-os lentamente fazendo perdurar o sabor.
Daí o meu atraso nas opiniões sobre livros, daí só agora a leitura de um livro que todos recomendavam: "A Ponte sobre o Drina".

"A Ponte sobre o Drina", romance da autoria de Ivo Andric laureado com o Nobel em 1961 conta-nos a história de um povo, da região da Sérvia e Bósnia-Herzegovnia, que congrega diversa etnias e religiões turcos - europeus, judeus,ciganos - mas que eram um único povo ao longo de vários séculos partindo de pequenas histórias (poderia até ser considerado ser um livro de contos)- passadas desde a os tempos da decisão de construção da ponte no séc. XVI - e que é o elemento catalisador e agregador - terminando em 1914. E são histórias, episódios, de gente do povo, não dos poderosos.
Ivo Andric conta as historias na linguagem simples das lendas e narrativas que poderiam ser contadas oralmente (provavelmente o autor terá até passado a escrito o que a oralidade lhe transmitiu) pelas gentes nas Portas da Ponte. Sem análise histórica, sociológica ou política (não seria provavelmente essa a pretensão de Ivo Andric)a maior virtude do livro é a sua harmonia e equilíbrio do princípio ao fim, porquanto não é fácil elaborar um romance fazendo a compilação de histórias tão distintas dando-lhe uma sequência onde parece que todas as personagens se conhecem e habitam o mesmo espaço durante todo o tempo. É daqui que resulta a ideia de povo, as histórias deixam de ser daquelas pessoas para passarem a pertencer a toda uma mole humana que é o povo daquela região dos Balcãs.

Não conheço a restante obra deste autor (em português só existem este e outro romance, "O Pátio Maldito") de modo a emitir um juízo sobre a justeza da atribuição do Nobel, no entanto este "A Ponte sobre Drina" não terá tido sido daqueles livros que mais contribuiu para o prémio. A ler, se não houver outras prioridades com melhor garantia.

Como nota: seria a todos os títulos recomendável que os textos de contracapa não fossem tão gongóricos nos termos - pertence à categoria das obras incontornáveis da literatura mundial - porque resultam bacocos e pouco correspondem à verdade.