03 novembro 2011

Na Margem do Teu Segredo, Julieta Ferreira, Lua de Marfim

Na Margem do Teu Segredo, de Julieta Ferreira, é um romance sincopado de modo contínuo. São quatro personagens que ocupam o mesmo espaço cénico, o mesmo tempo, mas cada uma delas está como que irremediavelmente só nos capítulos que lhes competem...e na vida. O que confere continuidade aos episódios, não são, mesmo que existam, laços familiares, ou histórias comuns, mas a escrita de Julieta Ferreira que num registo muito semelhante para todas as personagens estabelece o fio condutor.
Um romance sobre o Destino, o Tempo e a Morte, diz o texto da contracapa. E da Solidão. O que ressalta é sobretudo o isolamento das personagens no mundo que as rodeia. Mundo que mesmo identificado com nomes de cidades ou de ruas podia ser um qualquer lugar. E o dissecar pormenorizado dos passos diários, dos sentimentos, das memórias, da descrição da envolvência,da atenção dada às pequenas coisas, mais isola as personagens.

Uma obra com uma escrita cuidada - em que a escolha da palavra certa requer isolamento - à qual Julieta Ferreira confere o tom de intimidade e a sensação que as personagens nos dão o braço e nos levam, placidamente, a percorrer um jardim numa tarde de sol de inverno enquanto nos contam a sua história, já sem mágoa, sem ressentimento. Apenas a história

Na Margem do Teu Segredo é também um romance contido. No sentido que se adivinha um grande fôlego da autora para um grande romance e que terá tido "medo" de arriscar. Mas, paradoxalmente, acaba por resultar bem porque as personagens são apertadas no pequeno espaço/tempo que Julieta Ferreira ...e a vida, lhes concedem.

01 novembro 2011

VISÃO DA ACTUALIDADE DA SEMANA

- Sete mil milhões de habitantes no planeta Terra: O número foi celebrado porque um nascimento é sempre um momento de felicidade. No entanto, o número é assustador e, considerando que passaram apenas doze anos para a população crescer mil milhões, não se vêem soluções morais e técnicas para que dentro de poucos anos habitem em condições decentes quatorze mil milhões de pessoas. E depois por aí acima.

- Renegociação do acordo com a troika: Entende-se a vontade de demonstrar urbe et orbi que Portugal é capaz de cumprir o acordo. O que não se entende é que os governantes, que deveriam transmitir uma mensagem de passos seguros (saiu-me), passem uma mensagem de completo desnorte: então agora já é possível renegociar? O que a pés juntos se afirmava não poder ser feito. Só se foi para justificar que há mais medidas de austeridade para além da troika.

- Cultura: É-me indiferente que a Cultura tenha estatuto de Ministério ou de Secretaria de Estado. Não serão os mais ou menos doze mil euros por ano da diferença de ordenado entre Ministro e Secretário de Estado que constituem poupança. É-me indiferente porque a única tarefa parece ser gastar menos dinheiro numa política de cultura gasta e ultrapassada. Nisso estou de acordo com o Secretário de Estado da Cultura. Mas, pergunta-se: qual é a parte da frase "Queremos saber qual é a política de Cultura do PSD/CDS" que o Governo ainda não percebeu?

-A frase da semana: "Álvaro ou saco de boxe", sub-título da opinião de Nicolau Santos, no Expresso. Nicolau Santos diz duas ou tres coisas em favor do ministro Álvaro Santos Pereira, nomeadamente que tomou posse de um super-ministério ingovernável. Temos pena, foi ele que se pôs a jeito. O Ministro da Economia e do EMPREGO, transformou-se num saco de boxe porque, sendo o Ministro mais importante deste governo ao tem de criar emprego em contra-ciclo, acomoda-se à ideia que, como uma vacina, é preciso deixar aumentar o desemprego para depois renascer das cinzas. O problema, Senhor Ministro, é que as cinzas são de corpos humanos incinerados na fogueira da crise e do desemprego.

-O livro da semana: Sermões, Padre António Vieira, recomendo a todos, para reflectirmos que apesar dos avanços éticos e morais, em quase quinhentos anos a índole da natureza humana permanece inalterada.
Os Sermões estão disponíveis na internet.

31 outubro 2011

HUMOR MUITO NEGRO

HISTÓRIA I
Seria da chuva intensa que os olhos dos dois homens estavam aguados porque do interno as lágrimas escasseavam. O primeiro homem tinha-as perdido, as últimas, num emprego, em Setúbal, que desaparecera, assim, com estalar de dedos, de um momento para o outro. O segundo homem ainda tinha lágrimas, mas perdia-as em cada injecção de heroína.
Puxando a barba hirsuta, como que a espremê-la para a secar, o primeiro comentou:
- Esta noite, choveu comó caraças.
O segundo procurando uma pirisca húmida nos bolsos.
- Molhou-me a casa toda, ainda tenho de ver hoje se arranjo um cartão seco.
- É, agora fazem destas casas de material reciclável, mas são quentes no Verão e húmidas no Inverno.
Retornou o segundo:
- Sabes qual é o meu sonho? - enquanto limpava a agulha da seringa enferrujada a preparar a dose - era ter assim uma casa grande, onde eu me pudesse esticar à vontade, assim uma embalagem de um frigorífico amaricano.
Os olhos dos dois homens começaram a ficar baços, seria da neblina, ou talvez da fome.

(Escutada no Rossio)

HISTÓRIA II
Parei o carro à espera que o veículo saísse do separador central. Quando me preparava para arrumar, o moedinhas de jornal levantado corria rua acima a indicar-me que podia parquear no local que ele não ajudara a arranjar.
Sorriu-me com as gengivas descarnadas e a face do rosto chupada pela droga.
- Desculpe, senhor, não ajudar melhor a arrumar, mas estava ali em baixo a arrumar outro. E isto de andar todo dia, rua abaixo, rua acima, a levar com o fumo dos automóveis dá cabo da saúde.

(Na Rua Defensor de Chaves)