21 fevereiro 2012

E POR QUE NÃO "ÇAPATO" EM VEZ DE SAPATO?

Ferreira Fernandes, cronista que sigo com prazer, ontem, no DN, com a habitual perspicacia e inteligencia com que relaciona as coisas do Mundo, contou que um luandense foi chamado a atencao por escrever "çapato" em vez do correcto sapato, ao que o dito retorquiu se o outro que lera, por acaso, tinha lido bota, ou se nao percebera o sentido da frase escrita. Ja batendo na mesma tonica tinha escrito Henrique Monteiro, no Expresso do fim de semana, argumentando que quando cai o primeiro l do nome Mello, ninguem passou a ler mêlo com e aberto. (E digam-me lá se não perceberam tudo o que eu escrevi). Das peças acima citadas ressalta, sobretudo, que se deve ter em conta o primado da fonética sobre o do grafismo, desde que se perceba o que se está a ler. E, talvez, com razão, já que o parágrafo acima escrito não carece de acentuação para que qualquer leitor entenda o que foi escrito. Conclui-se que agua não necessita de acento para escrevermos quando temos sede, que pe dispensa o agudo quando temos uma dor na extremidade de um dos membros inferiores. O pior é quando se nos coloca a pergunta formulada por Miguel Esteve Cardoso há uns vinte e tal anos atrás: - Tens cagado em casa? - Não, tenho cagado no jardim. (Aqui um acentozinho fará toda a diferença). Julgo que uma língua não se mantém viva e enriquecida por facilitarmos e pactuarmos com o que são, agora, algumas deficiências e corruptelas da linguagem oral, nem tão-pouco por discutirmos a acentuação das palavras proparoxítonas, e do hífen na ênclise e na tmese...Muito menos a vivacidade da língua se fará por qualquer subjugação a interesses económicos (estou ara ver as resmas, as paletes - ai, o galicismo - de livros que os escritores portugueses irão vender a mais no Brasil). Julgo também, que em termos de acordo ortográfico já se atingiu o ponto de não retorno e que não valerá a pena esgrimir mais argmentos e contra-argmentos (leva traço, ou não leva traço?). Nós os defensores de antigos grafismos acabaremos por sucumbir, um a um, à medida do passar do tempo que, inexoravelmente (houve temos em que tinha de escrever isto com acento grave no a), nos irá dizimando. Ou mesmo antes, quando um neto nos pedir ajuda nos trabalhos da disciplina de português. Esta "coisa" do acordo dá-me é uma sensação imensa de prazer por poder fazer algo, e anunciar que faço, de acordo com o que penso, e não com o que me é imposto por lei. (A crónica de Ferreira Fernandes é muito mais - não em extensão, mas em conteúdo - do que o pequeno episódio que me serviu de base para esta reflexão. Vale a pena lê-lo).

1 comentário:

  1. Gostei da crônica. Também já havia visto pessoas a grafar palavras com cê-cedilha no início. É estranho para quem já se acostumou a vê-las com "s" ou "c", mas acontece que muitas vezes é possível resgatar a origem do uso; como você mesmo falou, "çapato" era usado por Henrique Monteiro. Nessa época, as palavras que em espanhol eram escritas com "z" (mas com som de "s") em português recebiam um "cê-zedilha" - daí a verdadeira origem desse sinalzinho em nossa língua. Podia-se até usar em início de palavras...
    Quanto aos acentos, é verdade que podemos abandoná-los, mas fariam muita falta, principalmente para diferenciar palavras.

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