14 junho 2012

A gastronomia do Euro 2012

Em dia que jogue a Selecção Nacional sou indefectível adepto da travessinha de caracóis. Nada de Praça Sony, Alameda da Universidade, ou Fonte Luminosa, com a turba-multa sentada no ervado e de lata de cerveja a aquecer na mão. Sou pelo pratinho de caracóis em snack-bar bairrista, já com os nóveis plasmas, e no convívio com a rapaziada.
Venham as primeiras imperiais e a primeira travessa para ver se o bicho está bom de tempero e acalmar os nervos causados por aqueles anúncios irritantes, quando sabemos que lá, lá no estádio, a claque já grita pelos nossos que evoluem no terreno fazendo passes compenetrados e esticando pernas e braços em aquecimento. Bichinho baboso e repugnante enquanto vivo, o caracol é, deyois de cozinhado, um bicho simpático, sobretudo o miudinho, de carapaça aveludada ao tacto e escorregadia derivado àquele molhinho que lhe dá o gosto.
Calor, camisola de alças, futebol, imperial e pratinho de caracóis.
Começa o jogo e o caracol é posto de lado. Comem-se os últimos à pressa porque no princípio do jogo ainda é permitido tirar os olhos do televisor que não é suposto haver logo golos, jogadas de perigo ou filhas-da-putíce dos árbitros. No decorrer do encontro leva-se continuadamente a mão à bejeca, companheira de lances duvidosos, bolas à trave, sarrafadas dos adversários.
A meio da primeira parte a bola já rondou diversas vezes a nossa baliza e nós ainda não fizemos um remate digno desse nome, comentador dixit. A nervoseira não aguenta mais, venha mais um pratinho de caracóis. Escaldam ainda nos dedos. Um olho no bicho para o desentocar, outro no televisor.
Se é golo de Portugal é a cerveja que salta sem protestos do gastrópode por ser relegado para segundo plano; se é golo do adversário o bichinho é refúgio do olhar esgravatando no recôndito da casca para evitar rever o cabeceamento fatal. Sou definitivamente pelo caracol, temos ali um amigo.

As gambas são outra coisa. São para um Alemanha / Holanda, para um Itália /França que são jogos aos quais se assiste com connaisseurs. São jogos de intelectuais, equipas que utilizam jogadores de outro mundo, com tácticas e técnicas de deixar o desconhecedor aborrecido, mas em que um connaissseur descobre a desutilização dos espaços vazios, mantendo-os vazios; do lançamento em profundidade para o defesa contrário; o connaisseur cita nomes de jogadores, desta e de outras eras, demonstrando o conhecimento de línguas. São jogos para verdadeiros amantes do futebol porque não há paixão clubista ou nacionalista em jogo. Assiste-se porque já se sabe de futebol e pretende-se saber ainda mais.
Reúnem-se os tais connaisseurs na casa de praia ou de campo e, depois de um almoço com as respectivas, no jardim junto à piscina, partem em calções e t-shirts de lagarto para a sala do televisor: um grande plasma com sensarround no qual se programa o som para Estádio.
fabuloso a bola ainda não rondou nenhuma das balizas porque as defesas se sobrepõem aos ataques, comentador dixit. Aí, a frase sacramental do dono da casa “e se fosse buscar umas gambas? Sempre dá para entreter” E aparece uma travessa com os bichos e uns guardanapos de papel.
As gambas dão para descascar e ver o jogo ao mesmo tempo. Fincam-se os olhos no televisor, põe-se o prato nos joelhos, parte-se o animal em dois, cabeça para um lado, corpo para o outro, vai-se debulhando o bicho até ficar a polpa tenrinha. E a bola roda, roda, roda, losango invertido, jogo posicional. No fim, a conclusão de espertos na matéria: "isto nunca são grandes jogos, são jogos muito tácticos".

Existem uns jogos do campeonato para os quais não se descobriu ainda o acompanhamento mastigativo adequado. Vai-se beberricando na cerveja, mas não há nada a condizer para trincar. São os jogos Rússia / Polónia, Grécia / República Checa. Aliás põe-se o avental para preparar o jantar e têm-se o televisorzinho da cozinha sintonizado no jogo, "que não interessa a ninguém".

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